Pandemia e Animais nas Ruas: Uma Calamidade Ignorada
Ao mesmo tempo que fazemos o trabalho importante de proteger a população humana da pandemia, não podemos continuar a ignorar a situação calamitosa dos animais nas ruas do nosso país. Um trabalho penoso que levou mais de década e meia, com muitos sacrifícios de particulares e associações, está a ser deitado por terra em pouco tempo. O trabalho de esterilização, absolutamente essencial e o único que ataca a raiz do problema de excesso de animais, tem estado praticamente parado por causa das variadas restrições e limitações a que temos estado sujeitos. Sem campanhas de esterilização, gatos e cães estão a multiplicar-se nas ruas, enquanto as suas condições de vida se deterioram rapidamente. É absolutamente urgente agir. E agir agora, não depois do final de uma pandemia que ninguém sabe quando terminará.
O cenário está próximo do vivido no início do milénio, mas culparmos o abandono pela quantidade de animais que vemos nas ruas é uma falácia. Não temos uma epidemia de pessoas maldosas a abandonar cruelmente os seus animais. Existe, isso sim, um facilitismo que vem de longe na forma como cuidamos dos nossos animais e que é urgente reconhecer. Todos os dias nos deparamos com casos de animais desaparecidos não esterilizados a quem era dada a liberdade de passearem sozinhos. E isto não pode acontecer. Não podemos contribuir, ainda que irreflectidamente, para gerar mais animais nas ruas. Não há aqui milagres. Animais não esterilizados que deambulam fora de casa vão reproduzir-se e todos esses animais vão sofrer as consequências da irresponsabilidade humana: fome, doenças, maus-tratos, atropelamento e morte precoce.
Está nas mãos de todos actuarmos naquilo que realmente faz a diferença e que está ao alcance de cada um de nós: esterilizarmos os animais que entram nas nossas vidas. Mais que nunca, é essencial que todos actuemos para evitar ainda mais nascimentos. Se não tivermos capacidade financeira para esterilizar os nossos animais, temos de ter cuidados redobrados e garantir que os gatos estão completamente seguros dentro dos limites de casa, sem possibilidade de sair para a rua, e que os cães são sempre passeados à trela. Temos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar que os nossos animais fiquem perdidos.
Neste momento, a situação dos gatos nas ruas é absolutamente dramática. Há centenas de gatas gestantes que não foi possível esterilizar ao longo deste último ano. Há dezenas de ninhadas que já estão a nascer por estes dias e muitas centenas mais se seguirão. Este cenário está a acontecer na nossa vizinhança, no nosso quarteirão, por todo o país. O comum cidadão passa indiferente a esta situação e poderá só reparar nos gatos quanto sair à noite ou quando vir o corpo de um gato atropelado na estrada. A única forma de controlar o número de animais nas ruas é com a esterilização. E, por mais malabarismos e sacrifícios que pessoas anónimas e associações façam, infelizmente, há sempre casos em que a captura para esterilização se torna impossível. Ora, se num local ficar uma única fêmea por esterilizar, basta haver nas redondezas uma casa com um macho não esterilizado que passeie sozinho para invalidar todo o trabalho árduo de meses ou anos. É que basta mesmo uma única ninhada.
Tomemos o exemplo de uma gata que tem 4 filhotes ou de uma cadela que tem 8 filhotes. Ninguém adopta toda uma ninhada de uma única vez. São necessárias 4 ou 8 famílias para que uma única ninhada seja adoptada. Repliquemos isto pelos milhares de animais que nascem todos os anos e vemos que não há forma de encaminhar responsavelmente tantos animais para adopção. É humanamente e matematicamente impossível. É por isso que é essencial esterilizarmos os nossos animais e tentarmos sensibilizar as pessoas dos nossos relacionamentos nesse sentido. E a necessidade de esterilização estende-se também aos animais que aguardam adopção. É vital que particulares, associações, centros de recolha ou qualquer outra instituição esterilizem os animais antes de os dar para adopção (ou, no caso de animais muito jovens, que haja compromisso de esterilização verificável). Se um animal esterilizado fugir ou tiver a grande infelicidade de ser abandonado no futuro, pelo menos, é garantido que não irá dar origem a mais animais nas ruas. E isso é vital.
Ao falar da importância da esterilização, é preciso falar também do seu custo, incomportável para grande parte das famílias, tanto mais numa altura de crise económica. Aqui, a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV) e os próprios médicos veterinários têm um papel determinante e é urgente que façam a sua parte para tornar a esterilização mais acessível. Lamentavelmente, numa atitude que mostra um completo alheamento em relação à realidade do país, quem oferece esterilizações a preços inferiores aos usuais é acusado de praticar concorrência desleal. Longe de ser censurável, praticar preços de esterilização acessíveis é um imperativo ético para qualquer médico veterinário com responsabilidade social e cívica.
Mais que nunca, é necessário que toda a comunidade faça um esforço colectivo e se mobilize a sério para ajudar a combater este problema. Sem a colaboração de todos, milhares de cães e gatos doentes, ao abandono e à fome vão ser uma constante diária nas nossas ruas durante décadas... E o falhanço será de toda a sociedade. Os responsáveis seremos todos e cada um de nós.